O ICMS (imposto sobre a circulação de mercadorias) é um tributo estadual e incide justamente pela comercialização e/ou transferência de bens e serviços realizadas pelos contribuintes. Até que seja aprovada a proposta de Reforma Tributária atual, o imposto ainda está vigente e com as regras de cobrança mantidas. De acordo com a proposta de alteração dos tributos, o ICMS deixará de existir, sendo substituído pelo IBS (imposto sobre bens e serviços) com uma ideia de simplificação.
Sem entrar no mérito da Reforma Tributária, certo é que o ICMS é um dos tributos mais complexos do nosso sistema, uma vez que a Constituição Federal de 1988 deu autonomia aos Estados e Distrito Federal para disporem das próprias regras, tendo, contudo, uma legislação base que deve ser seguida por todos, para que não haja enormes incongruências entre os entes federativos. A principal delas é a Lei Complementar n. 87/96, comumente chamada de Lei Kandir, em homenagem ao seu criador, então ministro do Planejamento, Antonio Kandir.
Na Lei Kandir, além das demais regras gerais do Imposto, há a previsão de uma questão particular que sempre foi controversa entre os contribuintes e o Fisco pela incidência tributária nas operações de transferências de mercadorias de estabelecimentos de mesmo titular. Nos termos do artigo, 12: “Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, ou seja, há a expressa previsão de incidência sobre a circulação de mercadorias entre os estabelecimentos.
Nestes termos, o estabelecimento que remete, ou circula, a mercadoria deve destacar o imposto em sua nota fiscal de saída em transferência (CFOP 5151/6151) que comporá os débitos do mês para fins de pagamento. Por outro lado, o estabelecimento que a receber, registrará em suas contas fiscais o ingresso pelo CFOP 1151 ou 2151 e registrará o respectivo crédito da operação.
A par da questão operacional e setorial de cada empresa, observa-se o contrassenso tributário da incidência, já que enquanto um estabelecimento recolhe o imposto, o outro acumula o respectivo crédito pela operação, ficando ainda mais evidente nas operações interestaduais. Ainda que gere o crédito na operação para o estabelecimento destinatário, certo é que haverá dois destaques de imposto, pela transferência inicial e na posterior venda da mercadoria, de modo que a depender das datas da operação, há um desencaixe financeiro desnecessário e oneroso ao contribuinte.
Supomos que uma determinada empresa industrial esteja sediada no Estado de São Paulo e mantenha uma filial distribuidora no Ceará e transfira mercadorias de sua produção com regularidade, mas sempre mantendo um estoque de segurança no estabelecimento filial. Primeiramente, recolheu-se o imposto ao Estado do estabelecimento matriz, mas não se sabe quando haverá a venda propriamente dita pela filial, de modo que há um recolhimento de imposto desnecessário na operação. Somente com a venda pela filial, será utilizado o crédito pela entrada recebido da matriz, mas haverá outro destaque de ICMS e posterior novo recolhimento. Assim, este contribuinte passa a ter um desembolso financeiro, muitas vezes antes da venda da mercadoria propriamente dita.
Por esta razão, através de inúmeros questionamentos judiciais dos contribuintes, é que chegou ao STF a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 49/2017 pela qual o Tribunal entendeu pela inconstitucionalidade da incidência de ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, em vitória aos contribuintes.
Após algumas decisões, o Supremo decidiu que os créditos das operações e prestações antecedentes devem ser mantidos, e os estados devem prever mecanismos de transferência dos créditos em operações interestaduais até 1° de janeiro de 2024, dada a modulação de efeitos da respectiva decisão.
Paralelamente, em decorrência do julgamento, foi apresentado o Projeto de Lei Complementar pelo Senado n. 332/18 que visa alterar a Lei Kandir para estabelecer, entre outras coisas:
• a não incidência nas transferências de mercadorias do mesmo titular;
• a manutenção do crédito de ICMS relativo a operações e prestações antecedentes; e
• o direito de transferência dos créditos entre origem e destino.
Aprovada no Senado em 09 de maio de 2023, o projeto segue agora para tramitação e votação na Câmara dos Deputados.
Em resumo, ainda que não se aprove a Reforma Tributária, tal qual tramita atualmente, a inconstitucionalidade do artigo da Lei n. 87/96 que previa exigência de ICMS sobre as transferências entre estabelecimentos de mesmo titular já é uma grande vitória aos contribuintes e pode causar impactos positivos, sobretudo financeiros, pela desnecessidade de recolhimento duplicado do imposto.
Autor: Leonardo Quirino Amaral
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