O Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, em tramitação no Congresso Nacional, propõe uma série de mudanças significativas no sistema tributário brasileiro, das quais, um dos aspectos que merece destaque é a relação entre a distribuição desproporcional de lucros das empresas e o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Este imposto, que incide sobre a transmissão de bens e direitos, pode ser impactado pelas novas regras propostas, especialmente no que diz respeito à forma como os lucros são distribuídos entre os sócios e acionistas.
1. Permissão legal para distribuição desproporcional de lucros
A distribuição desproporcional de lucros ocorre quando os resultados positivos apurados por uma empresa, dentro de determinado exercício, são destinados aos sócios em proporções distintas das suas participações no capital social. Essa prática é permitida pelo artigo 1.007 do Código Civil Brasileiro, que estabelece que os sócios podem livremente estipular a forma de distribuição dos lucros, desde que tal permissão esteja prevista expressamente no contrato social da empresa.
2. Abuso na utilização da permissão de distribuição desproporcional de lucros
Embora a legislação autorize a distribuição desproporcional de lucros e tal prática seja inclusive muito recomendada para inúmeras empresas, quando é feita de forma disfarçada, isto é, de maneira a ocultar a realidade dos fatos e com intuito exclusivo de pagar menos tributos, referida prática tem atraído a atenção das autoridades fiscais (estaduais e federais), resultando em autuações significativas.
A Receita Federal do Brasil (RFB) e as Secretarias da Fazenda (Sefaz) de diversas unidades da federação têm intensificado a fiscalização sobre essas operações, utilizando-se de cruzamento de dados e auditorias detalhadas para identificar irregularidades. Quando constatada a distribuição desproporcional de lucros, a RFB pode requalificar esses valores como remuneração disfarçada (“pro-labore”, por exemplo), sujeitando-os à incidência de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e Contribuição ao INSS. No âmbito das Sefaz, já há algumas autuações no sentido de exigir que seja recolhido o ITCMD sobre referidas distribuições desproporcionais, sobretudo quando se dão entre pessoas vinculadas (familiares, cônjuges etc).
Além dos tributos que podem ser exigidos pelas autoridades fiscais nas autuações, os contribuintes podem ainda enfrentar multas pesadas, que variam de 75% a 150% do valor do tributo devido, além de juros de mora.
3. Alterações Propostas e Implicações no ITCMD
3.1. Tributação da distribuição desproporcional de lucros
Uma das inovações do PLP 108/2024 é a possibilidade de tributação da distribuição de lucros, que atualmente é isenta de IR e também de ITCMD. A proposta trazida pelo artigo 160, §5º, I do Projeto sugere que a distribuição desproporcional de lucros “sem justificativa negocial passível de comprovação” sofra a incidência do ITCMD, especialmente quando isto ocorre entre pessoas vinculadas, o que, de acordo com o texto do Projeto são: a pessoa física que for cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau, de outra pessoa física; a pessoa jurídica cujos diretores ou administradores forem cônjuges, companheiros ou parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, de pessoa física; ou a pessoa jurídica da qual pessoa física for sócia, titular ou cotista.
3.2. Impacto na Distribuição Desproporcional de Lucros
A proposta trazida pelo PLP 108/24 parte da premissa que a distribuição desproporcional de lucros pode ser vista como uma forma de transferência de bens e direitos entre os sócios, como meio para um planejamento sucessório. Com a nova tributação proposta, a distribuição desigual pode ser interpretada como uma doação disfarçada, o que poderia levar à incidência do ITCMD. Isso ocorre porque, ao distribuir lucros de forma desproporcional, a empresa pode estar, na prática, transferindo riqueza de um sócio para outro, o que se assemelharia a uma doação.
Assim, a redação do PLP 108/24 fortalece o movimento coordenado por algumas Sefaz, que em sua atuação já vêm combatendo a distribuição desproporcional de lucros quando esta se dá entre partes vinculadas.
4. Consequências Fiscais e Necessidade de Planejamento
4.1. Aumento da Carga Tributária e impacto nos planejamentos sucessórios
Com a possibilidade de incidência do ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros, os sócios das empresas que têm tal prática podem enfrentar um aumento significativo na carga tributária. Isso se deve ao fato de que, além da tributação na fonte sobre a distribuição de lucros, os sócios que receberem valores desproporcionais podem ser responsabilizados pelo pagamento do ITCMD, dependendo da interpretação da Receita Federal e das legislações estaduais, desde que não haja justificativas plausíveis para tal desproporcionalidade.
Não podemos deixar de destacar que se a mudança proposta realmente passar a valer, haverá sérios impactos em alguns planejamentos patrimoniais e sucessórios, haja vista que o Fisco terá em suas mãos mais poder para desconsiderar operações em que não vislumbrar nenhum propósito negocial que não seja o mero não pagamento de tributos, levando inúmeras famílias a repensar suas estratégias.
4.2. Reforço na Documentação e Justificativas
Diante das possíveis mudanças, a necessidade de documentação e justificativas para a distribuição desproporcional de lucros se torna ainda mais crítica. As empresas deverão manter registros detalhados que demonstrem a razão econômica para a distribuição desigual, evitando assim a caracterização da operação como uma doação, o que poderia resultar na incidência do ITCMD.
Além disso, para evitar problemas tributários decorrentes da distribuição desproporcional de lucros, é essencial que os sócios adotem medidas contratuais e práticas empresariais adequadas. Apesar de ser obrigatório para que ocorra a distribuição desproporcional de lucros, sua mera previsão/permissão no Contrato Social da empresa pode não ser suficiente.
Por isto, é sempre recomendável que a distribuição desproporcional de lucros seja prevista e detalhada em um acordo de sócios, refletindo a realidade do negócio e as contribuições diferenciadas de cada sócio para o negócio. Essa abordagem é especialmente útil em empresas onde os sócios possuem diferentes níveis de investimento, expertise ou envolvimento na gestão.
Para prever e estruturar essa distribuição desproporcional de forma eficaz, é essencial que o acordo de sócios seja claro e detalhado. Primeiramente, deve-se definir os critérios que justificam a distribuição desproporcional, como o capital investido, o tempo dedicado à empresa, a responsabilidade assumida ou a expertise técnica de cada sócio.
Além disso, é importante estabelecer um mecanismo de cálculo que seja transparente e compreensível para todos os sócios. Isso pode incluir fórmulas específicas ou a utilização de indicadores de desempenho que reflitam a contribuição de cada sócio para o sucesso da empresa.
Outro ponto crucial é a inclusão de cláusulas que prevejam a revisão periódica dos critérios de distribuição, permitindo ajustes conforme a evolução do negócio e as mudanças nas contribuições dos sócios. Isso ajuda a manter a equidade e a motivação entre os sócios ao longo do tempo.
Ainda, recomenda-se que a empresa mantenha uma contabilidade rigorosa e transparente, registrando adequadamente todas as operações e distribuições de lucros. A documentação contábil deve evidenciar a conformidade com a legislação fiscal e a justificativa econômica para a distribuição desproporcional.
Considerações Finais
O PLP 108/2024 traz mudanças significativas que podem impactar a distribuição desproporcional de lucros e o planejamento sucessório, especialmente em relação ao ITCMD. A possibilidade de tributação da distribuição desproporcional de lucros e a interpretação de que essa prática pode ser considerada uma doação disfarçada exigem que as empresas e famílias adotem medidas proativas para evitar problemas fiscais. A documentação rigorosa, a justificativa econômica e o planejamento tributário estratégico são essenciais para garantir a conformidade com a nova legislação e minimizar a carga tributária.
Por fim, ressalta-se que o PLP é mais um movimento no sentido de apertar o cerco contra planejamentos patrimoniais e sucessórios fraudulentos e feitos de qualquer jeito, bem como trata-se de um indicativo claro sobre a visão que os governantes têm sobre o potencial de arrecadação que o ITCMD tem para os estados da federação, de modo que a cada dia mais as operações de planejamento sucessório deverão ser conduzidas com muito zelo e profissionalismo, evitando assim dissabores e principalmente que a sucessão ocorra de forma muito mais onerosa do que deveria, devido a multas e outras penalidades por infrações fiscais.
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