A transparência e a boa-fé entre as partes são essenciais para o sucesso e a sustentabilidade das transações societárias no mercado corporativo atual. Assim, em operações de M&A, é comum o vendedor prestar declarações expressas a respeito da sua situação e da situação dos bens do target (sociedade-alvo), as quais geralmente são fornecidas por meio de cláusulas de declarações e garantias (representations and warranties). Uma solução frequentemente adotada entre os contratantes é a estipulação de uma cláusula de sandbagging, também denominada cláusula de irrelevância da ciência prévia.
Comumente adotada em contratos de M&A, a cláusula de sandbagging advém do direito norte-americano e visa autorizar (cláusula pro-sandbagging) ou impedir (cláusula anti-sandbagging) que o comprador, após o fechamento do negócio (closing), se valha de cláusulas de declarações e garantias para buscar indenização decorrente de uma violação da qual já tinha ciência antes do fechamento da operação.
Então, a cláusula de sandbagging é uma disposição contratual que visa proteger o comprador em operações de fusões e aquisições, permitindo que ele possa buscar indenização mesmo que tenha conhecimento prévio de uma violação das declarações e garantias feitas pelo vendedor. Essa cláusula é especialmente útil nos casos em que o comprador descobre a violação após o fechamento da operação, o que pode ocorrer devido a uma investigação mais aprofundada dos documentos e informações fornecidas pelo vendedor, por exemplo. Nesses casos, a cláusula de sandbagging garante ao comprador o direito de buscar reparação pelos prejuízos causados pela inveracidade das declarações e garantias feitas pelo vendedor, mesmo que ele já soubesse dessa violação antes do fechamento da operação.
A inclusão de uma cláusula de sandbagging no contrato de compra e venda de ações ou de ativos pode ser uma estratégia importante para garantir a proteção do comprador no caso de descoberta de informações que possam afetar o valor da transação. No entanto, é fundamental que as partes envolvidas na operação de M&A estejam cientes e concordem com os termos dessa cláusula para evitar futuros conflitos e disputas judiciais. Assim, a inclusão de uma cláusula de sandbagging pode ser objeto de negociação e fazer parte da estratégia de proteção do comprador em operações de M&A, sendo importante que as partes estejam cientes dos impactos e das possíveis discussões que podem surgir em relação a essa cláusula, especialmente no que diz respeito à apuração dos danos e à prova da ciência prévia.
Pense na hipótese em que, no momento da assinatura do contrato, o vendedor declara que a empresa não possui passivos fiscais, mas, durante a due diligence, o comprador descobre que há, na verdade, passivos fiscais desconhecidos pelo vendedor. Pergunta-se: o comprador deve informar o vendedor sobre esses passivos e renegociar o preço da aquisição ou pode optar por permanecer em silêncio e alegar o vício apenas após o fechamento do negócio, buscando então as penalidades contratuais previstas ou indenização por violação das representações e garantias? Para responder o questionamento, é necessário analisar o comportamento das partes tanto na conclusão do contrato como em sua execução, a redação de cada cláusula pro-sandbagging ou anti-sandbagging adotada, se houver, e o contexto ou o momento no qual a cláusula foi incluída no contrato ou no termo de fechamento. Trata-se da análise da validade e da eficácia do sandbagging e das cláusulas que regulam os efeitos do conhecimento prévio pelo comprador de desconformidade de declaração e garantia, incluindo a averiguação da regularidade do exercício do direito subjetivo de pleitear ressarcimento após o fechamento do negócio.
Contextualizando, CATARINA MONTEIRO PIRES apresenta um conjunto de fatores que podem influenciar a determinação do dever de informar, cuja ponderação deve ser feita diante das circunstâncias do caso concreto:
“(i) a intensidade das negociações, (ii) os conhecimentos especializados de uma das partes e (iii) a existência de um erro por parte do comprador, do qual o vendedor se apercebeu. Inversamente, poderão aligeirar, ou excluir, esse dever, (i) o risco do negócio (ii) a apreciação da capacidade empresarial por parte do comprador (iii) deveres de sigilo, entre outras circunstâncias”.
JUDITH MARTINS-COSTA, por sua vez, sustenta que, no exame do caso concreto, será necessário analisar:
“(i) elementos fáticos subjetivos (ligados à pessoa dos envolvidos, tais como a sua possibilidade de acesso à informação; bem como à presunção, ou não, de assimetria informacional entre as partes); (ii) elementos normativos (tais como os usos do tráfico jurídico, a presença, ou não, de um dever legal e/ou contratual de informar) e elementos fáticos objetivos (v.g., a aceitabilidade, conforme a relação, de assumir-se o risco de ‘jogadas equivocadas’, como é próprio das relações interempresariais, cuidado prévio revelado pela realização de due diligence, ou a sua negligência, etc.). Em qualquer caso, o quantum informativo é questão de grau: não há dever jurídico de dação de informação ilimitada”.
No Brasil, a validade dessas cláusulas deve ser analisada à luz de normas cogentes do Código Civil, como a boa-fé objetiva prevista no art. 422, que exige que as partes ajam com probidade e boa-fé tanto na conclusão quanto na execução do contrato. A análise da boa-fé objetiva, em contraste com a conduta do comprador que oculta a ciência de uma violação para posteriormente buscar indenização, sugere que a cláusula pro-sandbagging pode ser considerada inválida no Brasil. Além disso, pode-se invocar o princípio do non venire contra factum proprium, que proíbe comportamentos contraditórios. Se o comprador assinou o contrato ciente da violação, ele teria renunciado ao direito de reclamar.
Por outro lado, o art. 421-A do Código Civil, introduzido pela Lei da Liberdade Econômica, estabelece que contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos, permitindo às partes definir os parâmetros de interpretação e de revisão das cláusulas contratuais. Isso dá novo impulso ao princípio do pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos) e pode servir como argumento para validar a cláusula pro-sandbagging.
No que diz respeito à prática nacional brasileira, é possível dizer que a adoção de cláusulas anti-sandbagging e pro-sandbagging esteja consolidada e já resultou em quantidade significativa de disputas arbitrais – as quais, no entanto, estão sujeitas à confidencialidade inerente às demandas arbitrais. Em contrapartida, a jurisprudência dos Tribunais de Justiça no Brasil sobre sandbagging ainda é escassa.
Ademais, a literatura jurídica no Brasil sobre cláusulas de sandbagging não é vasta e, em parte, levanta questionamentos quanto à sua regularidade, sobretudo à luz da boa-fé objetiva, notadamente quanto ao dever de informar, impedimento de comportamento contraditório ou renúncia tácita. Assim, diante do conhecimento prévio de desconformidade pelo comprador, questiona-se se é constituído o ônus ou o dever de informar a descoberta, sob pena de perda de seus direitos.
Na percuciência de NELSON EIZIRIK, um argumento para sustentar a validade da cláusula pro-sandbagging é a sua adequação à função social do contrato, sendo que, por vezes, é a pactuação dessa cláusula que possibilita às partes chegarem a um consenso a respeito do preço e viabilizar o negócio, de modo que o contrato, assim, propicia a troca econômica e cumpre a sua função.
De qualquer forma, conclui-se, aqui, pela validade e eficácia de diversas cláusulas pro-sandbagging e anti-sandbagging, por versarem sobre direitos disponíveis, bem como pela ineficácia de outras cláusulas, seja na sua redação ou no contexto de sua inserção no contrato, por violarem a boa-fé objetiva. A seguir, veja um exemplo de cláusula pro-sandbagging que, em sua essência, julga-se válida e eficaz quanto à sua redação: “Os direitos e remédios do comprador relacionados a quaisquer declarações, garantias ou compromissos feitos pelo vendedor ou pela empresa-alvo não serão afetados por qualquer inspeção, investigação ou conhecimento adquirido pelo comprador (ou que poderia ter sido adquirido pelo comprador)”.
Com efeito, a cláusula de sandbagging é uma importante disposição contratual a ser considerada pelas partes envolvidas em operações de M&A: sua inclusão no contrato contribui para a segurança e equidade da transação, promovendo uma relação mais transparente e equilibrada entre comprador e vendedor no mercado corporativo.
Portanto, é preciso que os empresários e demais agentes, ao firmarem contratos de compra e venda de participações societárias, estejam cientes quanto à insegurança jurídica existente sobre a licitude do sandbagging e a prevalência do direito do adquirente após a aquisição, bem como quanto à higidez das previsões contratuais sobre os efeitos do conhecimento prévio de falsidade por ocasião do julgamento de eventual litígio. Embora haja bons argumentos para sustentar a validade e eficácia das cláusulas pro-sandbagging e anti-sandbagging, a incerteza deve ser considerada na negociação e nas premissas jurídicas e econômicas da contratação, sob pena de haver posterior surpresa quanto aos riscos do negócio e à sua precificação.
WILTON JOÃO CALDEIRA DA SILVA é advogado no escritório Pádua Faria Advogados, graduado em Direito pela Unesp, pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera, pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), LLM em Direito Empresarial pela CEU LAW SCHOOL e MBA em Gestão de Negócios pela USP/ESALQ.
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