A garantia de acesso à saúde é um dos pilares fundamentais de uma sociedade justa e equitativa. Nesse contexto, os planos de saúde desempenham um papel crucial ao oferecerem assistência médica a seus beneficiários.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) desempenha a tarefa de regulamentar e fiscalizar esse setor, estabelecendo diretrizes para os serviços a serem disponibilizados. No entanto, a possibilidade de cobertura em tratamentos que não estejam previstos no rol da ANS apresenta questões jurídicas e éticas que merecem análise.
A priori, o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é uma lista de procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, que os planos de assistência médica do País são obrigados a oferecer. Contudo, a obrigatoriedade na disponibilização de tais procedimentos revela variações intrínsecas de acordo com a natureza específica de cada plano contratado.
Esta lista passa por revisões periodicamente, exercendo o papel de uma diretriz fundamental para a prestação de assistência por parte dos planos de saúde suplementar. Ocorre que, em diversas circunstâncias, a resolução de como tratar procedimentos ausentes nessa lista é deslocada para a esfera do Poder Judiciário.
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (EREsp 1886929 e EREsp 1889704) havia firmando entendimento de que, como regra geral, essa lista ostentaria um caráter taxativo, e assim as operadoras de saúde não estariam obrigadas a cobrir tratamentos não previstos. No entanto, em situações excepcionais, seria possível os planos custearem tais procedimentos.
Assim, tal postura adotada pelo STJ poderia acarretar na interrupção de tratamentos anteriormente acessados pelos beneficiários, particularmente em situações que envolvem portadores de doenças raras ou quadros clínicos nos quais a condição de saúde demandaria múltiplas intervenções médicas.
Nesse contexto, no dia 22/09/2022, a Lei 14.454/22 foi sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, a qual estabelece diretrizes para viabilizar a inclusão de exames ou terapias de saúde não contemplados no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
De acordo com essa lei, tratamentos ou procedimentos que não estejam originalmente contemplados na relação da ANS deverão ser abarcados pelos planos de saúde, observando o seguinte:
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” (NR)
Sendo assim, é necessário que haja embasamento científico que comprove sua eficácia ou que sejam respaldados por recomendações provenientes da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou ainda por ao menos um órgão de avaliação de renome internacional. Outra alteração adicional presente na lei estipula que as entidades de natureza privada que administram planos de assistência à saúde também serão sujeitas às disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor.
Dessa forma, a Lei 14.454/22 permite aos beneficiários dos planos de saúde obter acesso a procedimentos não mencionados na lista, uma vez que a lista em si possui um caráter meramente exemplificativo, conforme o entendimento mais recente do Superior Tribunal de Justiça, através de decisão monocrática proferida pela Ministra Relatora Nancy Andrighi, veja-se:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COMINATÓRIA CUMULADA COM COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA. PROCEDIMENTO NÃO LISTADO NO ROL DA ANS. [...]"é entendimento de todo consolidado por esta Corte que o Rol de Procedimentos da ANS é meramente exemplificativo, não cumprindo à operadora de saúde indicar ou restringir qual o tipo tratamento para enfermidade coberta pelo contrato" (e-STJ, fls. 306/308). [...] A título de reforço, ressalte-se que a Lei 14.454/2022, em vigor desde 22/09/2022, que afastou a natureza taxativa ao Rol da ANS, igualmente impõe, como condição para a cobertura pelos de saúde dos tratamentos não listados do referido rol, a existência de comprovação da eficácia científica do tratamento proposto, com recomendação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema único de Saúde (CONITEC) ou ao menos de um órgão de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional. (REsp n. 2.023.559, Ministra Nancy Andrighi, DJe de 23/11/2022.).
Nesse cenário, ante a solicitação médica bem fundamentada, a alegação de que o procedimento não consta no rol da ANS é irrelevante, confirmando que referido rol é exemplificativo, devendo os planos de saúde zelar pelo melhor tratamento de seus beneficiários.
Nesta senda, um procedimento médico a ser mencionado a título de exemplo é a realização de tratamento cirúrgico envolvendo uso de plataforma robótica. Em muitos casos, os planos de saúde negam cobertura para esse tipo de tratamento cirúrgico sob o argumento de que esse procedimento não está previsto no rol da ANS, e, portanto, não são obrigados a fornecer.
Além da lei aqui já mencionada, que estabelece a possibilidade de os planos cobrirem tais procedimentos, com base em alguns critérios, a Justiça também tem entendido que o simples fato de não estar dentro do rol da ANS não impede a cobertura pela operadora, desde que a recomendação esteja em acordo com a ciência.
A Súmula 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo prevê:
Súmula 102 - Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.
Sendo assim, o entendimento atual é de que se considera abusiva a negativa de custeio de tratamento sob o argumento de que o procedimento não está previsto no rol da ANS, uma vez que esse é exemplificativo e não taxativo, consoante a Lei nº 14.454/22 e da Súmula 102 do Estado de Justiça do Estado de São Paulo.
Portanto, a legislação que autoriza a cobertura de tratamentos não previstos no rol da ANS, como no caso de tratamentos envolvendo o uso de plataforma robótica, reflete a constante evolução das políticas de saúde no Brasil, destacando a importância de considerar os avanços médicos e as necessidades individuais dos pacientes.
Embora traga benefícios inegáveis, essa prerrogativa também gera desafios que demandam atenção cuidadosa para garantir que o acesso à saúde seja preservado sem comprometer a estabilidade das operadoras de planos de saúde. Em última análise, o equilíbrio entre a justiça na saúde e a viabilidade econômica permanece como um imperativo a ser cuidadosamente gerenciado em prol do bem-estar coletivo.
Referências:
GOV – Serviços e Informações do Brasil - Lei determina cobertura de tratamentos que não estão no rol da ANS. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2022/09/lei-determina-cobertura-de-tratamentos-que-nao-estao-no-rol-da-ans>. Acesso em 15 de agosto de 2023.
STJ - Rol da ANS é taxativo, com possibilidades de cobertura de procedimentos não previstos na lista. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx.> Acesso em 15 de agosto de 2023.
Autores:
Autora: Julia Maria Siqueira (juliasiqueira@paduafariaadvogados.com.br) é paralegal no escritório Pádua Faria Advogados, graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.
Autor: Djonata Donizeti De Souza (djonatha@paduafariaadvogados.com.br) é advogado no escritório Pádua Faria Advogados, OAB/SP nº 414.537, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, e Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP FADEP).
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