A cláusula de indenidade é um dos mecanismos mais importantes em contratos de M&A (fusões e aquisições), especialmente quando se trata de aquisição de participações societárias. Ela serve para garantir que as partes envolvidas em uma transação estejam protegidas contra perdas e responsabilidades que possam surgir após a conclusão do negócio, particularmente em relação a passivos ocultos ou riscos desconhecidos. Com sua crescente relevância no cenário jurídico e econômico, essa cláusula permite uma alocação de riscos mais equilibrada entre as partes e oferece segurança às negociações de grandes ativos empresariais. Este artigo explora as diversas facetas dessa cláusula, abordando suas funções, validade perante o julgador, alcance e eventuais limites de aplicação.
1. Funções e conteúdo da cláusula de indenidade
A função principal da cláusula de indenidade é proteger as partes envolvidas na transação, alocando de maneira clara a responsabilidade por passivos futuros e oferecendo uma solução em caso de quebra de garantias ou omissões. Em uma operação de M&A, muitas vezes as due diligences realizadas podem não ser capazes de identificar todos os passivos existentes, especialmente aqueles que podem surgir somente após a transação ser finalizada. Nesses casos, a cláusula de indenidade atua como um seguro contratual, assegurando que a parte prejudicada será compensada por eventuais perdas.
Para NELSON EIZIRIK:
“Há 2 (duas) principais formas de se regular a alocação de riscos e responsabilidades com relação à avaliação da empresa-alvo e às contingências. A primeira é o ajuste de preço, mediante cláusula de ‘earn-out’, pela qual deixa-se para o futuro uma complementação do preço em função de critérios estabelecidos no contrato, em geral vinculados à lucratividade alcançada pela empresa adquirida em determinado período. Já o risco representado pelas contingências é disciplinado no contrato mediante cláusulas de indenidade”.
O conteúdo dessa cláusula é bastante diversificado, podendo abranger uma ampla gama de riscos, desde passivos fiscais e trabalhistas até questões ambientais, regulatórias e de propriedade intelectual. Em contratos mais complexos, a cláusula pode prever mecanismos como: a. indenização por contingências fiscais e trabalhistas: um comprador pode exigir que o vendedor cubra possíveis obrigações que não tenham sido reveladas, como multas ou débitos com autoridades fiscais ou previdenciárias, sendo que, a partir disso, o vendedor será responsável por ressarcir qualquer valor pago pelo comprador caso esses passivos sejam identificados após a venda; b. fraudes ou informações falsas: se durante a negociação ou a execução da operação forem constatadas fraudes, a cláusula de indenidade pode ser acionada para cobrir as perdas incorridas; c. escrow ou retenção de pagamento: é comum que as partes estabeleçam um valor retido em escrow (conta de garantia) para assegurar o cumprimento das obrigações, ou um ajuste no preço final da transação para compensar possíveis riscos identificados durante o processo.
Além disso, é usual que o contrato estipule um limite de valor a ser pago como indenização (cap), além de um piso mínimo (deductible) para evitar indenizações por valores irrelevantes. A estipulação desses limites visa equilibrar as expectativas das partes e evitar que a parte prejudicada abuse do direito à indenização por eventos de pequeno impacto.
2. Validade da cláusula e o papel do Julgador
A validade de uma cláusula de indenidade, no Brasil, está subordinada aos princípios contratuais básicos de boa-fé, função social do contrato e equidade. O Código Civil, em seu art. 421, confere às partes liberdade para contratar, desde que observadas essas diretrizes. Contudo, essa liberdade encontra limites na legislação e na interpretação dos tribunais, que têm a prerrogativa de analisar a razoabilidade de tais disposições.
Um ponto de destaque na validade dessas cláusulas é a observância de eventos que não podem ser cobertos por acordos entre as partes, como fraudes ou omissões dolosas. Além disso, os julgadores costumam ser rigorosos ao avaliar se a cláusula foi redigida de forma clara e se respeita os princípios de boa-fé. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por exemplo, tem reiterado em suas decisões a importância da cláusula de indenidade, reconhecendo sua validade em diversos casos, desde que as disposições sejam equilibradas e respeitem a proporcionalidade dos riscos e das compensações pactuadas.
É relevante, neste aspecto, trazer a percuciência de NELSON EIZIRIK:
“Embora nosso sistema jurídico consagre o princípio da reparação integral, é há muito tempo reconhecido na doutrina nacional a possibildiade de as partes, mediante estipulação contratual, estabelecerem uma limitação da responsabilidade de indenizar. Tais estipulações são referidas na doutrina como ‘cláusula de irresponsabilidade’ ou ‘cláusulas de limitação da responsabilidade’, ou ainda ‘cláusulas de exoneração e limitativas de responsabilidade negocial’”.
Outro aspecto relevante diz respeito ao tratamento dado à indenidade por eventos futuros. A jurisprudência tende a ser restritiva quanto à extensão de indenizações por fatos completamente fora do controle das partes, como mudanças legislativas ou novas regulações. O julgador, nesses casos, exerce um papel fundamental na interpretação da cláusula, delimitando sua aplicabilidade em conformidade com as circunstâncias do contrato e os princípios gerais do direito.
3. Alcance da cláusula de indenidade
O alcance da cláusula de indenidade pode variar de acordo com o escopo da transação e a natureza dos ativos envolvidos. Em transações simples, a indenização pode ser limitada a passivos conhecidos ou facilmente verificáveis. No entanto, em operações de M&A mais complexas, que envolvem grandes empresas ou múltiplos ativos, o alcance da cláusula pode incluir: a. passivos ocultos: dívidas ou contingências não detectadas na due diligence, como obrigações fiscais ou trabalhistas, passivos ambientais, ou problemas relacionados a licenças e conformidade regulatória; b. indenizações por perdas não financeiras: a cláusula pode prever a indenização por danos à imagem ou à reputação empresarial, decorrentes de falhas operacionais ou regulatórias imputáveis à outra parte; c. prazo de validade: a cláusula pode especificar prazos para a reivindicação de indenizações. Geralmente, esses prazos estão alinhados com os períodos prescricionais da legislação aplicável, como o prazo de cinco anos para passivos fiscais.
Neste particular, vale-se da lição de CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO e SÉRGIO CAVALIERI FILHO no sentido de que, em nosso sistema jurídico, os danos somente são indenizáveis caso sejam certos, ou seja, juridicamente provados, diretos e imediatos, a teor do artigo 403 do Código Civil. Tanto o artigo 403 como o artigo 402 do Código Civil se referem aos prejuízos efetivos (danos emergentes e lucros cessantes. Sendo certos, diretos e imediatos, todos os danos, inclusive os lucros cessantes, devem ser reparados, tendo em vista o princípio da reparação integral, que orienta a quantificação do que deve ser indenizado, previsto no art. 944 do Código Civil.
Em certos contratos, a indenização pode se estender até mesmo a situações pós-fechamento da transação, como a assunção de obrigações adicionais caso novas legislações venham a impor responsabilidades retroativas às partes. Esse cenário, no entanto, depende de uma negociação cuidadosa e de uma cláusula claramente delimitada.
4. Eventuais limites de aplicação da cláusula de indenidade
Apesar de sua importância, a cláusula de indenidade não é ilimitada em sua aplicação. Existem restrições legais e jurisprudenciais que determinam até que ponto essa cláusula pode ser utilizada para transferir responsabilidades.
NELSON EIZIRIK define que:
“É possível que o contrato seja muito bem elaborado, estabelecendo como único remédio para a parte lesada a indenização nele prevista e limitada a um certo valor. Seria tal cláusula contratual plenamente aplicável, mesmo na hipótese de comportamento malicioso de uma das partes com a intenção de causar um efeito nocivo à outra? Ou seja, mesmo presente o dolo ou a culpa grave, a indenização não poderia ultrapassar o ‘teto’ do valor fixado na cláusula de indenidade? Trata-se de questão complexa, sendo necessário integrar as cláusulas contratuais que estabelecem limites de indenidade ao nosso sistema de direito obrigacional, particularmente às normas que protegem o consentimento e que se caracterizam como de ordem pública”.
Primeiramente, a legislação brasileira impõe limites à utilização da cláusula para eximir uma parte de responsabilidades que, por sua natureza, não são passíveis de transferência. É o caso de obrigações fiscais e trabalhistas, que, na maioria das vezes, envolvem terceiros (o Estado e empregados), e, assim, não podem ser negociadas integralmente entre as partes sem a devida consideração da Lei.
Além disso, a cláusula não pode ser aplicada em situações de má-fé ou dolo. Se uma das partes deliberadamente omitir informações ou fraudar dados relevantes para a transação, a cláusula de indenidade não pode ser usada para protegê-la dessas práticas ilícitas. A jurisprudência também estabelece que a indenidade não deve ser excessivamente onerosa ou desproporcional, especialmente quando comparada ao valor da transação. Em casos em que a indenização representa uma parcela significativa do valor da transação, o julgador pode considerar a cláusula abusiva ou desproporcional, ajustando ou até anulando sua aplicação.
Conclusão
A cláusula de indenidade é um instrumento fundamental em contratos de M&A, sendo amplamente utilizada para mitigar riscos e assegurar uma transação equilibrada entre as partes. No entanto, sua aplicação requer cautela e observância de limites legais e contratuais, garantindo que não se torne um mecanismo de transferência de responsabilidades indevidas. Para que sua aplicação seja eficaz, é importante que as partes envolvidas façam uma negociação cuidadosa e detalhada, estabelecendo claramente o escopo da indenidade, os eventos indenizáveis e os limites de compensação. Assim, a cláusula cumpre seu papel de oferecer segurança jurídica e permitir a concretização de negócios com maior tranquilidade e previsibilidade.
As decisões judiciais e os precedentes jurisprudenciais reforçam a importância de redigir cláusulas de indenidade de forma clara e equilibrada, garantindo sua validade e eficácia nos tribunais. Além disso, o uso de mecanismos como escrows e limites de indenização contribui para uma alocação de riscos mais justa e eficiente, protegendo ambas as partes contra surpresas pós-fechamento e assegurando o sucesso da operação.
Autores:
Wilton João Caldeira da Silva (wilton@paduafariaadvogados.com.br) é advogado no escritório Pádua Faria Advogados, Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera/UNIDERP, Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), LLM em Direito Empresarial pela CEU LAW SCHOOL, MBA em Gestão de Negócios pela USP/ESALQ e Qualificação para Data Protection Officer – DPO pela Opice Blum Academy.
Maria Eduarda Oliveira Romeiro (mariaeduarda@paduafariaadvogados.com.br) é advogada no escritório Pádua Faria Advogados. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca e Pós-graduanda em Direito Empresarial na PUC-RS e em Fashion Law na UNICESUMAR.
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