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O novo contencioso administrativo para o IBS: avanços, limites e riscos à segurança jurídica

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A reforma tributária em curso não se limita à criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Ela também inaugura um novo modelo de contencioso administrativo tributário, redesenhando a forma como contribuintes e o fisco resolvem seus conflitos. O Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, atualmente em tramitação, é o principal instrumento dessa transformação e traz regras que merecem atenção redobrada dos profissionais da área.


O PLP 108/2024 institui um contencioso específico para o IBS, com rito administrativo próprio, integrado ao Comitê Gestor do IBS (CG-IBS). Trata-se de uma tentativa de unificar e racionalizar o julgamento administrativo de um tributo compartilhado entre União, Estados e Municípios. A proposta visa assegurar maior uniformidade nas decisões e reduzir divergências regionais, mas, ao mesmo tempo, centraliza poderes e redefine garantias processuais que sempre foram sensíveis no direito tributário.


O procedimento começa com o lançamento de ofício e concede ao contribuinte o prazo de 20 dias úteis para impugnar o auto de infração. Esse prazo curto reforça a necessidade de organização documental e de defesa técnica imediata, sob pena de revelia.


Outro ponto relevante é que toda a produção de provas deve ocorrer no momento da impugnação. Apenas em hipóteses excepcionais (como força maior) será admitida complementação posterior. Essa limitação impõe uma lógica de “prova concentrada”, aproximando o contencioso administrativo de um processo judicial rígido e técnico. O descumprimento dessa regra gera preclusão, ou seja, perda do direito de produzir provas posteriormente.


Há também restrições ao poder das autoridades julgadoras. O texto do PLP prevê que os julgadores administrativos não poderão afastar a aplicação de normas legais por alegada ilegalidade. Em outras palavras, ainda que reconheçam a existência de vício normativo, não poderão deixar de aplicar a regra. Essa vedação, segundo especialistas, pode esvaziar a função garantidora do contencioso administrativo e enfraquecer o controle de legalidade dentro da própria Administração.


Além disso, o projeto impõe vedações ao uso de determinadas defesas fora do momento processual adequado, o que exige rigor procedimental e pode gerar a perda de teses relevantes se não forem apresentadas desde o início. Isso reforça a importância de uma atuação técnica cuidadosa já na fase inicial do litígio.


O PLP ainda prevê hipóteses de desistência tácita e expressa do processo administrativo — por exemplo, quando o contribuinte realiza o pagamento, adere a parcelamento ou ajuíza ação judicial sobre o mesmo tema. Em tais casos, entende-se que o processo administrativo perde seu objeto. Também se introduz a revelia, com efeitos automáticos para quem não apresentar defesa no prazo legal.


Em matéria recursal, o texto cria o chamado “Recurso de Ofício”, interposto automaticamente quando a decisão administrativa for contrária à Fazenda Pública. Além disso, o PLP traz mecanismos de provimentos vinculantes, a criação de um rito sumário para créditos de menor valor e até a possibilidade de decisões definitivas em primeira instância, conforme o montante envolvido.

Na prática, essas medidas buscam eficiência e previsibilidade, mas suscitam dúvidas quanto ao equilíbrio entre celeridade e garantias fundamentais. A uniformização de entendimentos e o caráter vinculante de certas decisões podem reduzir a autonomia das instâncias inferiores e o espaço de argumentação do contribuinte.


Diversas críticas têm sido feitas à proposta. Especialistas apontam que prazos curtos, provas concentradas, limitação ao controle de legalidade e centralização no CG-IBS podem enfraquecer o contraditório e a ampla defesa. O modelo tende a favorecer a eficiência arrecadatória em detrimento da proteção ao contribuinte.


Paradoxalmente, medidas criadas para reduzir a litigiosidade podem acabar gerando mais judicialização. Diante das limitações do contencioso administrativo, é provável que contribuintes busquem diretamente o Poder Judiciário para garantir o controle de legalidade e a análise mais ampla de suas defesas.


Outra preocupação é a possível redução da autonomia dos Estados e Municípios, já que o Comitê Gestor do IBS será responsável por uniformizar a interpretação, regulamentação e coordenação administrativa do novo imposto. Isso pode gerar tensões federativas e questionamentos sobre o alcance do poder decisório central.


No campo da transição, o PLP dedica dispositivos à compensação e ao ressarcimento de saldos credores de ICMS acumulados até a implantação do IBS. O tema é sensível, pois muitos desses créditos ainda são objeto de litígios no contencioso atual, e as regras de conversão podem impactar o resultado desses processos.


Por fim, o projeto define regras de transição entre o contencioso antigo e o novo, evitando que disputas em andamento fiquem sem solução ou sejam simplesmente encerradas. Ainda assim, a implementação desse modelo demandará ajustes profundos, tanto em estrutura quanto em cultura institucional.

O contencioso do IBS representa, portanto, uma das peças mais complexas e delicadas da reforma tributária. Ele pode significar um avanço em padronização e eficiência, mas apenas se conseguir preservar as garantias que legitimam a tributação e protegem o contribuinte. O desafio será equilibrar eficiência arrecadatória com segurança jurídica — e, como mostra a experiência brasileira, esse equilíbrio nunca é simples.


Texto elaborado por Ana Beatriz Sampaio, advogada especialista em direito tributário do Pádua Faria Advogados

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